PANCADA DE MÃE
Ubiratan Lustosa
Antigamente se educava de outro jeito.
Quando a piazada saía do sério os pais não tinham dúvidas e nem delongas
para aplicar um corretivo na base de tapas ou chineladas. O alvo escolhido
era o bumbum, local mais adequado para o castigo. Nádegas eram feitas
para isso, diziam os mais velhos.
Minha mãe, viúva e com dois filhos para criar, cônscia
de suas responsabilidades não podia dar moleza. E não dava. Filha de italianos,
era muito enérgica e não hesitava em usar a pá de mexer polenta para dar
umas lambadas no traseiro da gente.
Hoje se educa de outro modo e temos a mania de nos queixar
das travessuras da criançada, esquecendo as nossas traquinices infantis.
Subir em árvores, andar pelos telhados, xingar aos berros, caçar
passarinhos, pegar rabeira de carroça, entalar-se em pneus velhos
e sair rolando pelas ladeiras, tomar banho pelado nos rios da vizinhança,
apertar a campainha das casas e sair correndo se esconder, essas eram algumas
das peraltices dos moleques do meu bairro.
A gente vivia com machucaduras pelo corpo.
Certa vez cai de uma carroça e destronquei o braço. A extraordinária
Maria Polenta o consertou.
Merecíamos a alcunha de Saci com a qual éramos designados.
Na verdade, nossos pais tinham mesmo que ser enérgicos e vez ou outra
dar uma coça nos pirralhos. A gente fazia por merecer.
Ah, quantas travessuras, quantos castigos, mas aos poucos a gente aprendia o que era certo e o que estava errado. E, ao seu modo, as mães - sempre coube a elas a parte maior na educação dos filhos - iam preparando seus pimpolhos para a vida. Adultos, a gente agradeceu as palmadas levadas na infância, reconhecendo seguros que foram úteis e corrigiram muitas das nossas falhas.
Certa vez, ainda piá, minha mãe costurando na sua velha máquina Singer, sentei no soalho perto dela e comecei a brincar com uma xícara dentro da qual coloquei algumas moedas de tostão. Eu chocalhava as moedas e os ruídos foram irritando minha mãe.
- Pare com isso, você ainda vai quebrar essa xícara.
Era de fato uma xícara de porcelana muito bonita, com gravuras coloridas, minha mãe gostava muito dela. E eu chocalhando as moedas na xícara.
- Já avisei mais de uma vez. Pare com isso antes que a xícara quebre e eu tenha que te dar uns tapas.
Fui insistindo, insistindo, chocalhando, chocalhando até
que não deu outra: a xícara quebrou. Num salto me vi na porta da cozinha,
voei sobre os degraus da escada e fui velozmente para a praça em frente
de casa. Minha mãe me chamava e eu a irritava ainda mais indo cada vez mais
longe. Transformei em meu abrigo o local em que a gente jogava futebol com
bola de meia, engatando os pés na guanxuma abundante que se enfiava
entre os dedos da gente. E fiquei lá.
O tempo foi passando, minutos, horas e de repente começou a escurecer. Então,
resolvi voltar pra casa, na esperança de que minha mãe já não lembrasse
da minha travessa teimosia. Entrei ressabiado e dei de cara com ela, ainda
imaginando que ela tivesse esquecido. Não tinha.
O corretivo veio de pronto e eu aprendi mais uma: não adianta se esconder
esperando que um erro seu seja esquecido.
Os anos passaram, eu cresci, fiquei adulto e um dia, coração
enfraquecido pelas agruras pelas quais passou consagrando a vida à
criação dos filhos, ela se foi. Senti sua falta, curti saudade
e, coisa estranha, a amei mais do que quando estava aqui. Senti essa sensação
que muitos filhos sentem depois que suas mães partem: o remorso por
não ter sido mais obediente, mais carinhoso com ela.
E quanto às lambadas recebidas, nada a reclamar; era coisa da época
e os pais batiam nos filhos porque era assim que se educava naqueles tempos.
Correta ou não essa prática dava certo. Era desse jeito que
se domava Saci.
Notas:
a) A praça mencionada no texto é a Praça Ouvidor Pardinho, também chamada
Praça da Igreja
do Coração de Maria, em tempos remotos o Campo da Cruz.
b) Maria Polenta - Maria Trevisan Tortato - fazia massagem magnética junto com rezas e benzeduras. Era famosa pelas curas obtidas. Tornou-se uma lenda curitibana.
Do livro NOSSO ENCONTRO COM UBIRATAN LUSTOSA.
Instituto Memória Editora.