CURITIBA JÁ FOI ASSIM
Ubiratan Lustosa
Eu vi, senhores, eu vi!
Foi em frente ao Colégio Iguaçu, na Praça
Rui Barbosa.
Enfurecidos, populares quase acabaram com um bonde, quebrando todos os vidros,
bancos, o "relógio" grande que marcava o número
de passageiros, tudo, tudo.
Não satisfeitos, tentaram virá-lo. O bonde, porém,
era muito pesado.
Até que a polícia chegasse, o prejuízo foi enorme.
A raiva era imensurável, a indignação não tinha
tamanho. Não há de ver que aumentaram o preço da passagem,
passando, se não me engano, de um tostão para duzentos réis?
Que absurdo!
Naquele tempo a gente não estava acostumado com aumentos,
não havia inflação, ninguém se preocupava com
a cotação do dólar e ainda não tinham inventado
a correção monetária. Cobrar juros acima de 3% ao mês
era agiotagem.
Havia calma. Os aumentos salariais eram dados em função da
competência de quem trabalhava. Aumentos gerais, por categorias profissionais,
eram muito raros. Por isso os curitibanos estavam inflamados com o aumento
do preço das passagens dos bondes. Eu era guri e nunca tinha visto
aquilo. Levei um susto danado. Depois vim a saber que de nada adiantaram
os protestos. O novo preço prevaleceu.
O tempo passou e um dia eu vi novamente os curitibanos enraivecidos. Tudo começou com a discussão entre um freguês e o "turco", dono de uma loja. O motivo foi um pente. Parece que o freguês queria a nota fiscal e o comerciante não quis dar porque o valor era mínimo. Discussão banal, de fácil solução, transformou-se num quebra-quebra violento com uma horda percorrendo a cidade e destruindo estabelecimentos comerciais de estrangeiros. A essa altura, todo estrangeiro era "turco" - designação popular dada às pessoas de origem árabe. E dá-lhe quebrar as vitrinas e destruir o que fosse possível. Uma loucura.
Essas explosões dos curitibanos, povo normalmente de temperamento calmo e pacato por natureza, sacudiram a cidade. Era algo fora do comum, muito raro. Nosso povo não era disso.
Meu Deus, como Curitiba era calma.
Podia-se sentar às mesas dos cafés para tomar um simples cafezinho,
discutir política, fazer poesia. Sem pressa.
No Cine Luz, na Praça Zacarias, as meninas ficavam em pé,
recostadas nas poltronas, de costas para a tela enquanto a sessão
não começava. E os rapazes desfilavam pelos corredores, tentando
uma aproximação ou simplesmente flertando com as gurias. Quando
soava o gongo e as luzes se apagavam lentamente, era um corre-corre em busca
de lugares para sentar.
Depois da matinê, havia o footing na Rua XV. Era um vaivém
de rapazes e moças no meio da rua, trocando olhares, namorando, exercitando
a arte da conquista que acabou levando a muitos casamentos.
Assassinatos eram muito raros. Sequestros não havia
e nem se ouvia falar. Os ladrões não matavam e eles é
que quase morriam de medo quando estavam praticando um roubo. Ladrão
tinha vergonha de ser ladrão.
Não havia desemprego e quem não trabalhava
é porque era vagabundo mesmo.
Parece incrível, mas Curitiba já foi assim.
Nas noites de verão, casas iluminadas, janelas e portas escancaradas,
as famílias vizinhas ficavam na rua proseando enquanto as crianças
brincavam alegremente. Não havia tantas grades nas casas e a tranquilidade
era total.
Puxa vida, passaram-se "apenas" algumas dezenas de anos e como tudo mudou. Mudou ou deteriorou?
Minha Curitiba, no entanto, apesar de tudo continua linda,
humana e muito querida.
Como foi bom ter nascido aqui. Como é bom viver aqui.
Do livro
NOSSO ENCONTRO COM UBIRATAN LUSTOSA -
(Instituto Memória Editora - 2013).