A BATATA QUENTE

Ubiratan Lustosa

Na tentativa de aplacar a revolta popular e justificar fracassos no combate ao crime, já ouvi muita gente dizer que é da sociedade a culpa de haver tantos bandidos.
Quando se fala de criminosos mirins, hoje em dia cometendo atrocidades que espantam até os facínoras veteranos, sempre surge alguém a dizer que a culpa é da sociedade. Ninguém aponta nomes, ninguém diz, concretamente, quem é culpado de que. Generaliza-se a culpa atribuindo-a a sociedade.
Tendo em vista que sou um humilde integrante da sociedade brasileira, procuro saber o que fiz de errado e qual a parcela de culpa que me cabe.
Como cidadão, procuro cumprir os meus deveres e até abdiquei de alguns direitos ao perceber que as autoridades responsáveis pela "sociedade" a que pertenço não têm demonstrado competência para garanti-los. Da mesma forma que tantos brasileiros, pago para ter segurança, quando caberia ao Estado garanti-la. Pago plano de saúde, quando teria direito a atendimento gratuito. (E nem me perguntem por que prefiro pagar a ter o atendimento público de graça; as frequentes reportagens da mídia mostram os motivos). O meu direito de ir e vir livremente há muito tempo foi extinto por falta de garantias. Pago impostos e taxas, cumpro as minhas obrigações, e esperava que as pessoas ungidas com a honraria da autoridade fizessem a sua parte. E noto, decepcionado, que muitas delas deixaram de cumprir os seus deveres com a nação. E ninguém assume a responsabilidade pelo fracasso.
Há menores desamparados? A culpa é da sociedade.
O crime aumenta dia a dia? A culpa é da sociedade.
Morre gente nos corredores dos hospitais por falta de atendimento? A culpa é da sociedade.
As estradas estão em ruínas? A culpa é da sociedade. E por aí afora.
Simples cidadão, eu não posso criar escolas e nomear educadores, não posso prender ou soltar alguém, não posso construir hospitais e designar médicos, não posso mandar fazer ou arrumar estradas, porém pago impostos e taxas de onde sai o dinheiro para que se faça tudo isso.
Então, não me considerando culpado, eu pergunto: a que parte da sociedade cabe a culpa? Quem da sociedade não tem feito o que deveria fazer?
Ao pagar nossos tributos, nós todos presumimos garantir a folha de pagamento de pessoas que ficam encarregadas de exercer diversas funções de interesse coletivo. Já que aceitam o pagamento, intrinsecamente assumem as obrigações. Assim, a sociedade paga para que alguém legisle, alguém administre, alguém julgue, alguém faça o que deve ser feito. Se essas pessoas por negligência, descaso ou incompetência, não cumprem os seus deveres, com que direito lançam a culpa das coisas ruins à sociedade?
Já passou da hora das pessoas que representam a sociedade assumirem as suas culpas. Não queiram dividir os erros quando não dividem o bem-bom dos cargos públicos.
A participação que a sociedade tem, e mesmo assim não é generalizada, pois se limita aos que são eleitores, é a de escolher aqueles a quem outorgar poderes. Esses sim, que assumem poderes e ao mesmo tempo aceitam obrigações, são os responsáveis verdadeiros pelo que se faz de bom e merece elogios ou pelas coisas erradas que merecem a nossa reprovação.
Atribuir a culpa de fracassos à sociedade como um todo é apenas um simplismo condenável, é fugir às responsabilidades, é covardemente colocar a batata quente na mão dos outros.

Está no livro
NOSSO ENCONTRO COM UBIRATAN LUSTOSA
(Instituto Memória Editora - 2013).